João Batista Damasceno, desembargador do TJdivulgação

O prefeito Eduardo Paes editou um decreto no último dia 15 que causou mais rebuliço na Praia de Copacabana que causariam correrias e gritos de que está havendo arrastão. Já presenciei uma cena dessas. Um segurança desconfiou de uns meninos que cruzavam por mim no calçadão e ao andar em direção a eles cada qual correu num sentido. Apareceram pessoas de todos os lados correndo atrás dos garotos sem saberem o porquê empreendiam a caçada. Outros meninos aproveitaram para fugir, antes que fossem confundidos com os que eram perseguidos. Banhistas igualmente se apressaram em sair da areia. Mães com suas bolsas, cangas, toalhas e filhos colocados debaixo do braço também corriam para deixar a praia, fugindo da violência imaginária. Continuei minha caminhada pois vira que nada tinha acontecido que justificasse aquela agitação. Fui até o fim do calçadão. Ao retornar pude ver que o alvoroço se ampliara.
Havia carros de polícia com sirenes e giroflex ligados, guarda-vidas com seus quadriciclos rodando pela areia em alta velocidade tal como se estivessem num rally pelo deserto, guardas municipais empunhando seus cassetetes tais como D. Pedro I com sua espada proclamando a independência, crianças e adolescentes magrelos com os olhos arregalados detidos dentro das viaturas e uma multidão de curiosos no entorno contando suas versões. Todo mundo era um pouco cinegrafista, fotógrafo e repórter naquela cena. O furdunço começara do nada e ninguém sabia explicar o que tinha acontecido, mas não faltavam versões imaginárias. Eu que tinha visto o começo da história, testemunhei como um grande incêndio pode começar com uma simples fagulha.
Mas voltemos ao decreto do prefeito! Trata-se de um ato regulamentar que dispõe sobre a proibição de atividades que contrariem o ordenamento urbano e público na orla marítima da Cidade do Rio de Janeiro. Copacabana é a praia mais famosa do mundo e o bairro que, talvez, tenha a maior diversidade, inclusive de classes sociais. Pretender ordenar as múltiplas interações e relações estabelecidas em Copacabana deve ser mais dificultoso que a pretensão de impor moralidade em alguns estabelecimentos da Rua Prado Júnior, no mesmo bairro, com a ostentação de uma imagem de São Jorge. Mas se não é possível ordenar a vida social pelos meios normativos e repressivos é necessário que as instituições se imponham como referencial de ordem e redutoras das incertezas do futuro.
O decreto não tem novidade alguma. Tão somente trata da necessidade de preservar o ordenamento urbano, a segurança, o sossego público e a adequada utilização dos espaços públicos na orla da cidade, bem como visa a reforçar o combate a práticas que representem abusos, desordem ou usos indevidos da orla que interfiram na mobilidade, limpeza urbana, meio ambiente e qualidade de vida dos cidadãos. É só isto. E não poderia ser diferente. Um decreto apenas regulamenta direitos, deveres e interesses dispostos em lei. Não pode dispor de forma diferente da norma superior. A hierarquia das normas impede que uma norma inferior contrarie a superior. Uma lei é editada por dois poderes: o Legislativo e o Executivo. Um decreto é ato normativo que visa explicitar um comando para o cumprimento daquela. O problema ficou no campo da interpretação. No decreto faltou explicitação de alguns temas e poderia oportunizar discricionariedades ou até mesmo arbitrariedades. E daí o pânico dos trabalhadores dos quiosques.
No dia 27 o prefeito editou novo decreto, com redação esclarecedora, revogando expressamente o anterior. Mas valeu o alerta. De vez em quando é preciso relembrar que a vida coletiva demanda restrição a interesses privados em proveito dos interesses coletivos ou sociais. Se cada qual quisesse conduzir seu carro no sentido que o nariz lhe aponta, nenhum de nós sairia do lugar. A imobilidade seria total.
Copacabana é um bairro ímpar. Mas por vezes é impossível andar no calçadão dada a quantidade de tapetes, toalhas e cangas espalhadas com mercadorias expostas, por trabalhadores ambulantes que não deambulam. Na ciclovia às vezes é pior. Mães com carrinhos de bebê reborn, cachorros conduzidos por seus tutores, ciclomotores, bicicletas elétricas e patinetes infernizam a vida de quem deseja pedalar. Quem mora na orla tem a necessidade de janelas antirruído, em razão dos carros tunados com alto-falantes amplificados nos domingos e feriados e outros sons que se socializam sem a demanda dos demais ouvintes. Na pista fechada para uso dos pedestres se locomovem os ciclistas. Alguns quiosques pretendiam casas de espetáculo ou salões de festa, sem preocupação com o sossego da vizinhança. Só isto!
A cada quinze dias no quiosque da Maria Alice, o Espaço A, em frente ao número 974 da Avenida Atlântica, das 11h00 ao meio-dia, um tema é exposto por um filósofo, cientista social ou escritor e debatido entre os presentes. O decreto originário chegou a perturbar alguns que frequentam a atividade cultural. Mas a ela não se destinava. Assim, hoje, teremos a conferência do professor Carlos Frederico Gurgel, sobre “A consolação da filosofia”, de Severino Boécio, escrita por volta do ano 524. Trata-se da mais importante obra filosófica do Ocidente até o início da Renascença.
Estive com o Secretário Municipal de Ordem Pública, Brenno Carnevale, rimo-nos do alvoroço imotivado e lembramos que o decreto do prefeito funcionou tal como o sino da igreja que toca não para os fiéis, que sabem a hora da missa, mas para lembrar, àqueles que andam faltando, que o templo ainda existe. O decreto apenas rememorou que as atividades em público se subordinam ao interesse público.