William Douglas é Desembargador Federal/TRF2, professor, escritor, Mestre em Estado e Cidadania (UGF) e pós-graduado em Políticas Públicas e Governo (EPPG/COPPE/UFRJ)Divulgação
“Se a Rússia está excluída do futebol, por que o genocídio em Gaza não é punido?”
A pergunta é retoricamente poderosa, mas falaciosa e uma perversão da realidade totalmente indevida para alguém que se propõe a fazer jornalismo.
Comparar a exclusão esportiva da Rússia com a permanência de Israel nas competições europeias parte de uma premissa que ignora fatos básicos e compromete a honestidade intelectual do debate.
Talvez o articulista não saiba — ou prefira ignorar — que há civis israelenses sequestrados em Gaza, enquanto não há relatos de civis russos mantidos como reféns na Ucrânia. Talvez também não tenha se atentado ao fato de que foi a Rússia quem invadiu a Ucrânia, enquanto, em 7 de outubro de 2023, foi Israel quem sofreu uma invasão brutal a partir de Gaza, em um ataque terrorista que assassinou 1.200 pessoas, em sua maioria civis, com cenas de barbárie que chocaram o mundo.
Naquela data, Gaza era território autônomo. Nenhum soldado israelense ocupava o enclave. Mesmo assim, o Hamas decidiu cruzar a fronteira e instaurar o terror. A resposta militar de Israel — por mais debatida que seja — tem como fundamentos legítimos a recuperação dos reféns e a remoção de um grupo terrorista do poder. Um grupo, vale dizer, que não apenas reivindicou o ataque como prometeu repeti-lo.
Ao tentar aplicar a lógica das arquibancadas a um dos conflitos mais sensíveis do planeta, Juca Kfouri não entregou análise, mas desinformação. Seu texto, mais próximo de um panfleto ideológico do que de uma coluna jornalística, ignora o contexto, minimiza o terrorismo e contribui para a erosão do debate público. Ao trazer a paixão dos estádios para o campo da geopolítica, o articulista comete uma simplificação extremamente perigosa. Não sabemos se foi um cartão vermelho ao bom senso ou apenas uma bola fora. Mas, certamente, Juca Kfouri errou feio.
A desconexão com a realidade e a propagação de uma versão próxima de fake news am a impressão — ou melhor, a certeza — de que a paixão está sendo mais importante que os fatos. No futebol, ite-se a paixão. Mas comentaristas esportivos, embora possam senti-la, deveriam contê-la. E, se isso já se espera no futebol, que dirá quando se trata de analisar uma guerra secular, grave e complexa. Levar a lógica da arquibancada para o campo da geopolítica é uma simplificação extremamente perigosa. A defesa da exclusão de Israel termina, na prática, por oferecer apoio indireto a um grupo terrorista e por dificultar ainda mais qualquer solução pacífica e razoável para esse cenário. O antissemitismo já está em crescimento; matérias como essa agravam ainda mais o cenário. Sem dúvida, afirmar tais inverdades está amparado pela liberdade de opinião e pela liberdade de imprensa — mas é um uso profundamente inadequado dessa liberdade. Quando se usa um direito tão precioso para distorcer os fatos, o efeito é lesivo e contraproducente.
A tentativa de paralelismo entre os dois casos — Rússia/Ucrânia e Israel/Gaza — não apenas é intelectualmente desonesta, como desinforma o leitor e obscurece o debate público. É o tipo de analogia fácil que agrada ideologias e manchetes, mas trai os fatos e compromete qualquer análise minimamente séria.
Não bastasse isso, Kfouri ainda repete, como se fosse sensata, a mesma comparação que já havia sido feita pelo presidente Lula — uma comparação que foi amplamente repudiada por líderes internacionais, inclusive europeus, por sua insensatez e caráter ofensivo.
Lamentavelmente, quando se trata de Israel, parte da opinião pública se permite deslizes que não toleraria em nenhum outro contexto. Os fatos deixam de importar. A complexidade cede lugar a narrativas simplificadas. E o debate vira palanque e tentativa de expor virtudes.
Entende-se que Juca Kfouri tenha especial apreço pelo universo do futebol. Mas, quando se propõe a comentar política internacional, seria prudente — e ético — que se informasse melhor antes de fazer afirmações tão graves quanto equivocadas.
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