Frequentadores do Bar da Cachaça, na Avenida Mem de Sá, repercutiram mudança no letreiro nas redes sociaisPedro Teixeira / Arquivo O Dia

Rio - Frequentadores têm usado as redes sociais para relatar a descaracterização dos letreiros de bares tradicionais e populares da cidade do Rio. As placas que carregaram durante décadas os nomes dos estabelecimentos com suas particularidades foram modernizadas e aram a estampar cores e padrões de marcas de cervejas.
Nos últimos dias, diversos clientes externaram suas lamentações do que acreditam ser a perda da identidade desses locais. Eles apontaram a modernização no Bar Social Lapa, na Rua do Rezende, e o Bar da Cachaça, na Avenida Mem de Sá, na Lapa, no Centro. A reportagem do DIA ainda encontrou alterações nos letreiros do Cacimba Bar, na Avenida Gomes Freire, no Boteco do Pires, na Avenida Mem de Sá, e no Ponto de Encontro Ximeninho, na Praça João Pessoa. 
O DIA ouviu frequentadores e estudiosos da cultura dos bares no Rio, que apontaram a mudança nos letreiros como apenas o começo para o fim da tradição dos botecos cariocas. O cientista social e fotógrafo Eduardo Freitas, autor de uma das publicações que repercutiu nas redes sociais, diz que não considerar as particularidades de cada bar na nova placa desvaloriza os estabelecimentos.
"Acho que é intencionalmente desarmônico. Se você for ver, esses letreiros têm elementos e cores que buscam apenas chamar atenção, tudo muito 'blocado', 'chapado', não tem muito cuidado e ajuste com cada estabelecimento. Quando a gente reproduz isso em volume pela cidade, é como se a gente estivesse ando pelo mesmo lugar", pontuou ele, que diz ainda acreditar que as marcas teriam mais destaque e aceitação se investissem na restauração dos letreiros.
"A minha 'bronca' é com a impossibilidade das empresas entenderem essa dimensão estética e de memória da cidade. Fico pensando se elas não poderiam se associar a um programa de restauro, fazer um debate público com a própria clientela. Eu acho, inclusive, que traz mais valor agregado à empresa, mas parece que isso não está nem na mesa para conversa. Se troca os letreiros, daqui a 3, 4 anos trocam por outros, e gente vai apagando um pouco do que se tem de memória dos bares populares", alertou.
Aposentado, o roteirista Rixa, que se diz amante dos botecos tradicionais, afirma que a padronização tem transformado o comércio de rua em um shopping a céu aberto. "O Rio não tem muito apreço pela memória. Você vai em um shopping na Zona Norte, na Zona Sul, e as lojas são as mesmas, e isso está começando a acontecer com o comércio de rua (...) A gente vai perdendo um pouco da identidade, vai ficando um grande shopping a céu aberto. As cervejarias mudam a placa original para colocar a sua marca e acabam ficando todos os bares iguais. A própria indústria da cerveja não colabora para que a gente preserve. É lamentável".
Frequentador assíduo dos bares, o comerciante Felipe Quintans defende que as marcas deveriam atuar junto com os estabelecimentos pela preservação da identidade. "É claro que se quebrar, se danificar ou ficar muito velho, é normal o dono colocar algo mais moderno, porque é muito difícil fazer um letreiro com a arte de antigamente. Mas, a principal culpa é das grandes cervejarias, que deveriam entender um pouco do comércio para quem elas vendem o produto (...) Podiam fazer o mínimo, que era preservar o original. Quem frequenta bar, mesmo, reclama, se incomoda, e percebe que é uma coisa que ficou padronizada, a pessoa não sabe nem em que bar está". 
Memória urbana
O poeta e professor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp-UFRJ), Evandro Von Sydow, responsável pelo inventário das pinturas tombadas de Nilton Bravo em comércios cariocas,  aponta que o incômodo parte somente daqueles que valorizam a história do local, além do produto vendido. Ele atribui a falta de percepção dos consumidores também ao uso contínuo da tecnologia, que fez com que muitos perdessem a sensibilidade sobre as características dos ambientes.
"Eu sou um apaixonado por botequins e, principalmente, por alguns elementos especiais dos botequins. Infelizmente, eu não sei se tirar os letreiros, os azulejos, e colocar aquela coisa uniformizada da cervejaria, se os clientes vão ligar. Eu vou nos bares conversar, tirar fotos, faço registros, e eu não vejo as pessoas minimamente interessadas nisso, e os novos donos não se preocupam. O impacto só é sentido por aqueles que realmente sentem. Infelizmente, a maioria das pessoas não sentem impacto, seja um letreiro homogêneo da cervejaria ou um letreiro bonitão". 
O dono do Surubar, na Lapa, Igor Renovato, considera que a alteração agride o contexto estético, histórico e geográfico em que estão inseridos, causando o apagamento da originalidade e da memória desses estabelecimentos, além de não respeitar as características que tornaram esses espaços marcantes e tradicionais.
"Não é a primeira vez que isso ocorre, não é exclusividade de marca A, B, ou C. O letreiro agride visualmente, destoa do contexto estético, histórico e geográfico em que esses bares se encontram. Apaga-se a originalidade e um pouco da história dos lugares dessa forma (...) Creio que haja um orçamento grande por trás e, por isso, também acredito que tenha-se outras formas de posicionar a marca, que respeite as especificidades desses bares simples e comuns, mas que por isso mesmo são ricos em suas respectivas simplicidades".
Igor ressaltou que apesar de lamentar a mudança na estética dos letreiros, acredita que a alteração pode ajudar os estabelecimentos a continuarem funcionando. "Espero que os bares não sofram com o famigerado cancelamento. A provável verba que entra com essa troca, certamente ajudará bastante esses bares. Entre um botequim fechado, fato que sempre lamentamos quando acontece, ou com letreiro desagradável, mas aberto, prefiro a segunda opção".
O escritor, historiador, professor e compositor Luiz Antônio Simas destaca que a medida costuma ser adotada por donos dos bares para receberem incentivos financeiros para manterem o funcionamento e promoverem melhorias nos estabelecimentos. "Você tem de um lado uma marca querendo fazer propaganda e do outro os donos querendo ganhar dinheiro com essa propaganda, o que é legítimo". Simas ressalta, no entanto, que a medida caracteriza a falta de reflexão sobre a memória urbana da cidade.
"É um sinal triste de uma memória urbana que vai se apagando na cidade do Rio de Janeiro. Nós somos uma cidade propensa a cuidar muito mal dos seus lugares de memória e o botequim é um lugar de memória. O botequim, à rigor, é um registro material de uma memória da cidade que é importante e esses letreiros estão vinculados a isso. É uma cidade que vai sendo mercantilizada, o capital vai tomando tudo e se apropriando, inclusive, de algumas tradições que são importantes para a história da cidade". 
A reportagem não conseguiu contato com os estabelecimentos citados. O espaço segue aberto.