Após dois anos e meio preso, homem em situação de rua é absolvido de acusação de homicídio
Sérgio Luiz Belém Marques, de 36 anos, ficou detido após ser apontado por testemunha como responsável pela execução do dono de uma borracharia em Queimados
Sérgio deixou a penitenciária de Japeri na tarde desta quinta (5) após dois anos e meio preso injustamente - Acervo pessoal
Sérgio deixou a penitenciária de Japeri na tarde desta quinta (5) após dois anos e meio preso injustamenteAcervo pessoal
Rio - Dois anos e meio preso por um crime que não cometeu. A vida de Sérgio Luiz Belém Marques, de 36 anos, mudou completamente após ser acusado de um homicídio, ocorrido no ano de 2022, em Queimados, na Baixada Fluminense. Nesta terça-feira (3), o homem, que vivia em situação de rua, foi inocentado pelo Tribunal do Júri.
Sérgio (C) com os advogados Camila (E), João (E) e Arthur (fundo), além das irmãs Kelly (camisa do Botafogo) e GiselleAcervo pessoal
Sérgio foi preso após uma acusação de ter matado o dono de uma borracharia a tiros na Estrada dos Caramujos, no bairro Glória, em outubro de 2022. Na ocasião, uma testemunha apontou o homem como responsável pela execução. O acusado trabalhava para a vítima e, em troca, podia dormir no estabelecimento.
Em depoimento na época, Sérgio negou o crime e disse que não esteve na borracharia no dia do homicídio. Ao DIA, o advogado criminalista Arthur Assis explicou que a prisão aconteceu apenas em decorrência da testemunha e que a pessoa não presenciou o assassinato para poder apontar Sérgio como culpado.
"Fomos no lugar do crime, vimos como a Defensoria e o Ministério Público atuaram e ficamos estarrecidos com o que aconteceu. Analisamos 27 vídeos e a própria testemunha que o acusava não estava no local do crime no momento. Foi muito fácil pegar uma pessoa em situação de rua e deixar lá. Quando falaram que havia sido uma pessoa em situação de rua, a investigação acabou e não procuraram mais nada. E isso era uma grande mentira", disse o doutor.
Assis contou que entrou no caso há um mês ao procurar por processos na região de Queimados. Segundo o advogado, ao ler os documentos da ação penal, ele encontrou algumas incongruências e resolveu atuar em prol de Sérgio.
"Era uma pessoa que tinha diversos problemas e que em nenhum momento acreditaram. É o que chamamos no Direito de injustiça epistêmica. Não dão valor à prova e à palavra em situação de vulnerabilidade. O que o incriminou foi uma testemunha mentirosa que furtou o telefone da vítima. Não procuraram mais nada. Isso é justiça social e o amor que temos pela área. O Direito é muito mais do que dinheiro. É usar o nosso estudo a favor da vulnerabilidade", destacou.
A defesa ressaltou que Sérgio chorava todos os dias no período preso e a sua família pensava que ele estava morto, pois não recebeu nenhuma informação sobre a prisão. Ele tem outros oito irmãos e um filho. Agora, o advogado busca a reintegração do homem na sociedade.
"Conseguimos a absolvição de forma unânime. É uma história de um indigente, esquecido pelo Estado, que precisou vir a advocacia para resolver. Não queremos deixar ele se perder de novo. Estamos tentando fazer o pós cárcere. Ele disse que ia para a igreja. Era uma pessoa desacreditada. A família pensava que ele tinha morrido, não faziam nem ideia de que ele estava preso. Ele disse que vendia doce e capinava até os 17 anos e depois ele se entregou ao álcool. Estamos tentando que ele tenha o amparo da família para que não volte a ser uma pessoa em situação de rua. Queremos a reaproximação dele com o filho. Nosso sonho é fazer essa reintegração completa para ele se ver como uma pessoa de direitos", completou.
Sérgio possui uma anotação por furto e a ideia da defesa é limpar o nome dele para reabilitação. Também trabalharam no caso a advogada Camila Oliveira, sócia de Assis no escritório COS Advocacia, e o advogado Jonatan Ramos.
Soltura
Sérgio deixou a Penitenciária Milton Dias Moreira, em Japeri, na Baixada, às 16h54. Pouco depois, já no escritório do advogado Assis, conversou por telefone com o DIA, demonstrando ainda uma mágoa pelo período em que esteve atrás das grades indevidamente: "Graças a Deus, estou livre depois de ficar preso por uma coisa que não fiz. Essa mulher me acusou do que não fiz. É uma pessoa que não tem consciência. Mas agora estou feliz".
Após a primeira refeição livre do pesadelo da prisão injusta (sanduíches, biscoitos e refrigerante), Sérgio revelou seus planos para as próximas horas: "Primeiramente, falar com minha família. E depois, tomar um banho, deitar e descansar".
Já a longo prazo, ele garantiu que pretende voltar a trabalhar, de preferência em uma função que já exerceu anos atrás: "Vou procurar um emprego, um serviço para distrair minha cabeça. Sempre gostei de trabalhar. E quero voltar para a varrição. Já fui gari de carteira assinada".
Sobre o período na cadeia, Sérgio destacou o ambiente de hostilidade: "Eu já estava ficando maluco. Era sinistro! Lá não é para qualquer um, quase todo dia morre um de porrada. Mas nunca aconteceu comigo. Sempre respeitei, nunca fiz nada errado. Só fiz amizade. Tem que chegar e saber sair, tratar todo mundo bem, mesmo que seja um criminoso".
A primeira noite de Sérgio fora do presídio será na casa de uma irmã, chamada Adriana, em Nova Iguaçu - município da Baixada onde toda a família reside. Mas outras duas irmãs mais velhas, que estiveram com ele logo após a saída da penitenciária, prometeram que vão se manter próximas, prestando apoio e, se necessário, chamando atenção: "Dou muita bronca no Sérgio, mas é para o bem dele. E vou continuar, ele gostando ou não (risos)", garantiu Kelly Mara Belém.
Giselle Luiza Belém, a mais velha dos nove irmãos, contou que pretende ajudar o irmão aproximando-o do filho dele, de oito anos: "Vai fazer bem para ele".
Mesmo com Sérgio livre, o trabalho de Arthur Assis não está encerrado: "Ele quer processar o estado pela prisão injusta", adiantou o advogado, fazendo um pedido pelo cliente: "Se uma alma caridosa, uma clínica talvez, pudesse ajudá-lo com um tratamento dentário, esse seria o nosso pagamento".
Erro de comunicação
Segundo Assis, um erro de comunicação fez a família de Sérgio seguir para o Presídio Tiago Teles de Castro Domingues, em São Gonçalo, na Região Metropolitana, para esperá-lo. Antes da saída do homem, o advogado explicou: "Ao invés de levarem ele para São Gonçalo, fazem a triagem de presos que tiveram audiência pela Baixada. Já era para estar em São Gonçalo há muito tempo. O oficial de Justiça chegou no presídio e foi informado que o preso ainda não tinha sido transferido. Ele vai ter que sair. Falei com a irmã dele e ela disse que o nome dele está lá em São Gonçalo para sair. Como é uma pessoa em situação de rua, não esquentam".
Por nota, a Secretaria de Estado de istração Penitenciária (SEAP) informou que Sérgio permaneceu em Japeri por conta da proximidade com o local da audiência de custódia. A pasta destacou que é praxe o procedimento de manter o custodiado acautelado em uma unidade próxima ao local da audiência.
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